domingo, 17 de maio de 2009

*Os Novos Escravos*

Hoje eles são tigres, leões e chimpanzés. Também são elefantes, ursos epequenos animais. Na verdade, os circos não poupam quase nenhuma espécie. Cangurus, hipopótamos, girafas. Avestruzes, porcos, serpentes. O que puderser capturado e exibido. E, principalmente, os que não sejam protegidos. A África, continente por décadas sem leis ou limites, foi insistentemente saqueada para abastecer os circos do mundo todo com suas espécies exuberantes e incomuns. O mesmo se pode falar de regiões asiáticas.

Assim os circos tradicionais sobrevivem. Da ausência de leis e da miséria. Sem isso, não há circo. Os elefantes, por exemplo, sempre foram comprados por bagatela em regiões africanas onde o tráfico que abastece circos consegue mão de obra barata para captura dos animais e qualquer resistência é facilmente corrompida. Regiões pobres da Índia e Tailândia têm fornecido elefantes asiáticos nos últimos anos, além de tigres. Enquanto na América se exibem estes, o tráfico leva animais do Amazonas para longe. Antas,micos-leões, macacos-aranha, araras, onças e outras tantas espécies exclusivas da fauna sul-americana são vistas em países da Europa que ainda insistem neste tipo de negócio. Sem leis para defendê-los são hoje as vítimas do lucro fácil dos circos, que nunca viveram de outra forma.

Porque há algumas décadas os escravos tinham uma outra face. Até que a abolição da escravatura fosse assinada e as leis de direitos humanos começassem a tomar força pelos países influentes, os picadeiros e cartazesdos circos anunciavam outra atração: a exibição humana. Pobres, doentes, escravos, órfãos, estrangeiros, ingênuos ou gente infeliz que, por qual razão seja, se submetia aos comandos de seus "patrões". Estes, cuja vida, como menciona a obra 'Freaks Monstrous', "era freqüentemente uma miséria", ou ainda, "mais semelhante à escravidão que a emprego.". A preferência dos circos era por negros escravos, crianças ou adolescentes, pessoas com retardamento mental ou mesmo aqueles que não tivessem outra opção na sociedade devido a alguma deformidade ou doença. Os circos compravam crianças de pais pobres ou mães solteiras ou as ganhava, com a promessa deque lhes daria uma vida digna. Tudo ilusão, como os próprios espetáculos. Somente uma minoria conseguia ter dinheiro suficiente para se aposentar quando velho e deixar a vida sob a lona.

Haviam até mesmo os “caçadores de talento”, que viviam de encontrar aquelesque seriam os “números” dos picadeiros. Não eram artistas, nem apresentavam qualquer forma de arte. Eram anunciados como “as aberrações da natureza”. Os cartazes e os megafones dos circos conclamavam a população a assistir aapresentação das criaturas mais bizarras da Terra: uma mulher gorda, anões, gigantes, uma mulher barbada e pessoas com as mais inimagináveis anomalias. Crianças com duas cabeças, mulheres sem os braços ou as pernas, homens que eram fusão com alguma espécie animal, gêmeos “siameses” e tudo o que a mente dos donos de circos pudesse alcançar. O próprio têrmo “siameses” passou a ser usado popularmente para gêmeos xifópagos a partir dos primeiros irmãos a surgir nos picadeiros, Chang e Eng, comprados de pais pobres do Sião (atual Tailândia) e exibidos como monstros no Barnum Circus, a partir de 1829, até sua morte.

Um circo inglês apresentava Sara Baartma, uma negra trazida da África, do povo hotentote. Os cartazes do circo valorizavam o volume incomum de suas nádegas, chamando-a de “A Vênus Negra”. Era exposta seminua por 12 horas diárias no circo, além do que sofria abusos sexuais. Millie-Christine, “A Rouxinol de Duas Cabeças” era, na verdade, duas irmãs xifópagas, unidas na altura do osso sacro. Nascidas escravas, foram vendidas para um empresário de eventos. Ensinadas a cantar, foram exibidas em diversos lugares e vendidas outras vezes. Eram submetidas a uma rotina cansativa de trabalho,além de sofrerem constantes abusos sexuais. Um dos mais conhecidos, sem dúvida, foi Joseph Merrick, ou “O Homem-Elefante”. Nascido com uma deformidade que tomou conta de 90% de seu corpo e perdendo a mãe logo cedo, acabou por submeter-se ao dono de um circo, onde era exibido numa jaula. Durante uma certa apresentação em Paris, em que, devido à doença, não conseguia se pôr de pé, foi espancado pelo dono do circo com tanta violência, que revoltou a platéia.

Os donos de circo, sempre oportunistas, souberam viver das ocasiões que lhes favorecia. Da escravidão ou da pobreza. Da falta de leis ou mesmo da ignorância da população comum. Ricos empresários de circo como o famoso Phineas T. Barnum que “importava” as “aberrações” de qualquer parte do globo para expor em seu picadeiro, logo eram imitados pelos circos menores. Lembremos que Barnum, é o grande inspirador dos empresários de circos tradicionais que existem por todo o mundo até hoje. A astúcia de Barnum pelo lucro, aliás, é inquestionável. A historiadora Marian Murray, em seu livro 'Circus!', menciona que Barnum foi conhecido por muitos como um "malandro, eterno mentiroso e um trapaceiro sem escrúpulos que perpetuou uma série de fraudes engenhosas a um público que ele via como bobos.".

E não é para menos. Apenas três meses após o lançamento da obra “A Teoriadas Espécies”, por Charles Darwin, Barnum apresentou em seus espetáculos “O Elo”, um ser que ele anunciava ser “o elo perdido de Darwin”, “a criatura intermediária entre o Homem e o macaco”. Não era nada mais que um dos “artistas” de Barnum, dentro de uma jaula e emitindo sons tentando imitar um animal.

Os “Homens Selvagens de Bornéo” não eram, na verdade, selvagens nem deBornéo. Eram um par de anões gêmeos que sofriam de retardamento mental, que Barnum vestia e apresentava como pigmeus selvagens que falavam em sua “língua nativa”. O “Homem-Cachorro” era, na verdade, um homem que, apesar de falar, pensar e realizar qualquer coisa de modo normal, apenas por sofrer de uma anomalia que provocava excesso de pêlos pelo corpo, era mostrado em uma jaula, rosnando e imitando uma fera. O circo anunciava que ele havia sido capturado em uma caverna, por caçadores na Rússia.

Mas esses são, apenas alguns breves casos que faziam parte dos espetáculos que visitavam cidades e cidades, impressionando gente humilde e enriquecendo os “empresários” de coleções bizarras que assombravam a Terra. O “Homem deTrês Pernas”, o “Homem de Três Olhos”, O “Monstro Sem Pernas”, a “Mulher Cara de Mula”, o “Esqueleto-Vivo” e outros “monstros” estariam ainda nos cartazes de circos pregados pelos postes das nossas cidades, não fossem as leis que começaram, pouco a pouco, proibir a exploração desses infelizes e impedir os donos das casas de “maravilhas” de os exibirem. Primeiro, com aconquista dos grupos abolicionistas, que fez com que negros escravos não fossem mais objetos sem direito. Depois, os advogados e gente empenhada por direitos humanos a pessoas com síndrome de Down ou, por fim, qualquer outra condição que tornasse um indivíduo indefeso.

A princípio, os donos de circo se deslocavam de cidades e países, procurando aqueles locais que ainda facilitassem os espetáculos livres. Mas, à medida que as leis foram se tornando cada vez mais rigorosas e que cada vez mais cidades abraçavam a mesma mentalidade de direitos a pessoas e protegiam esses indefesos, não restava outra coisa aos “empresários” de espetáculos senão, ou abandonarem a rotina destes eventos, ou, outros, passassem a procurar outros “artistas”. Mas desta vez, os que não tivessem a seu favor sindicatos, representantes ou legislação que os protegesse. Assim, as“aberrações” começaram a ser descartadas e “aposentadas” e as feras -os novos escravos!- foram tomando seus lugares.

Hoje são os tigres e elefantes que desfilam pelas ruas fazendo a propaganda do circo que lucra às suas custas. Hoje são os leões e chimpanzés que apanham para realizar “truques” para impressionar o público ingênuo, que, como antes acreditava, continua acreditando que tudo aquilo é só “de mentirinha”, que por trás da lona todos são felizes e que depois do espetáculo a fantasia permanece.

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