quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Rubem Braga

Bruno Lichtenstein

*Rubem Braga*
*
**18 de Julho de 1939*


Foi preso o menino Bruno Lichtenstein, que arrombou a Faculdade de Medicina.


O menino Bruno Lichtenstein não é arrombador profissional.

Apenas acontece que o menino Bruno Lichtenstein tem um amigo, e esse amigo é
um cachorro, e esse cachorro ia ser trucidado cientificamente, para estudos,
na Faculdade de Medicina.

O poeta mineiro Djalma Andrade tem um soneto que acaba mais ou menos assim:

*"se entre os amigos encontrei cachorros,
entre os cachorros encontrei-te, amigo".*


Mas com toda a certeza o menino Bruno Lichtenstein jamais leu esses versos.

Também com certeza nunca lhe explicaram o que é vivissecção, nem lhe
disseram que seu cão ia ser vivisseccionado.

Tudo o que ele sabia é que lhe haviam carregado o cachorro e que iam
matá-lo. Se fosse pedi-lo, naturalmente, não o dariam.

Quem, neste mundo, haveria de se preocupar com o pobre menino Bruno
Lichtenstein e o seu pobre cão? Mas o cachorro era seu amigo — e estava lá,
metido em um porão, esperando a hora de morrer. E só uma pessoa no mundo
podia salvá-lo: um menino pobre chamado Bruno Lichtenstein.

Com esse sobrenome de principado, Bruno Lichtenstein é um garoto sem
dinheiro. Não pagará a licença de seu amigo. Mas Bruno Lichtenstein havia de
salvar a vida de seu amigo — de qualquer jeito. E jeito só havia um: ir lá e
tirar o cachorro.

De longe, Bruno Lichtenstein chorava, pensando ouvir o ganido triste de um
condenado à morte. Via homens cruéis metendo o bisturi na carne quente de
seu amigo: via sangue derramado.

Horrível, horrível. Bruno Lichtenstein sentiu que seria o último dos infames
se não agisse imediatamente.

Agiu. Escalou uma janela, arrebentou um vidro, saltou.

Estava dentro do edifício. Andando pelas salas desertas, foi até onde estava
o seu amigo.

Sentiu que o seu coração batia mais depressa. Deu um assovio, um velho
assovio de amizade.

Um vulto se destacou em um salto - e um focinho quente e úmido lambeu a mão
de Bruno Lichtenstein. Agora era fugir para a rua, para a liberdade, para a
vida...

Bruno Lichtenstein, da cabeça aos pés, tremia de susto e de alegria. Foi aí
que ele ouviu uma voz áspera e espantada de homem.

Era o dr. Loforte. O dr. Loforte surpreendeu o menino. Um menino pobre, que
tremia, que havia arrombado a Faculdade. Só podia ser um ladrão!

Bruno Lichtenstein não explicou nada — e fez bem. Para o dr. Loforte um
cachorro não é um cachorro — é um material de estudo como outro qualquer.

Na polícia apareceu o pai do menino. O pai, o professor e o delegado
conversaram longamente — e Bruno Lichtenstein não ouvia nada. Só ouvia, lá
longe, o ganir de um condenado à morte.

Já te entregaram o cachorro, Bruno Lichtenstein. Tu o mereceste, porque tu
foste amigo.
Não te deram nem te darão medalha nenhuma — porque não há medalha nenhuma
para distinguir a amizade.

Mas te entregaram o teu cachorro, o cachorro que reivindicaste como um
pequeno herói. Tu és um homem, Bruno Lichtenstein — um homem no sentido
decente da palavra, muito mais homem que muito homem.

Um aperto de mão, Bruno Lichtenstein.

*
O texto acima foi extraído do livro "1939 - Um episódio em Porto Alegre (Uma
fada no front)", Ed. Record - Rio de Janeiro, 2002 - pág. 37.*
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